A melhor forma de transformar um percurso de três quilômetros em 30 é percorrê-lo de joelhos. A Vivian entende do assunto, afinal ela faz isso há mais de uma década. Moradora do Pedreira, um bairro de Belém, ela prometeu à Nossa Senhora de Nazaré que participaria todo ano do Círio assim, de joelhos, pela vida de sua filha, que nasceu com um problema de coração. Aos 16 anos, a filha da Vivian está aí, firme e forte e estudando. Motivo suficiente para que a mãe cumpra a promessa.

No último domingo, dia do Círio de Nazaré, eu acompanhei essa história. Eu estava lá, pertinho, quando a Vivian entrou no último quarteirão do trecho de 3,6 quilômetros. Ela, que começou o percurso praticamente sozinha, estava cercada por dezenas de pessoas – gente da Cruz Vermelha, voluntários, amigos, parentes ou quem simplesmente estava ali e resolveu ajudar. Tinha quem desse água, tinha quem fizesse massagem, tinha quem falasse palavras de apoio e não faltou quem cantasse. “A Vivian vai chegar”, diziam todos. Chorando, ela chegou. E me fez chorar também. Eu e quase todo mundo que acompanhou aquele quarteirão final, que teve duração de maratona.

A Vivian, no final do percurso

Embora eu tenha sido batizado e feito a Primeira Comunhão, não sou católico e acho que nunca serei. A fé, no entanto, me fascina. Não tem templo que eu não queira visitar, sem importar a religião; não tem evento religioso que eu não queira ver de perto. Há algo de belo, de grandioso, e, por que não, divino em cada demonstração de fé. A Vivian fez o que fez porque acredita em algo, e não há nada mais forte que isso.

Desde que pisei em Belém pela primeira vez, em 2015, me encantei com a cidade, que é quase outro país – uma parte de um mundo amazônico. E, naquele ano, estimulado pela Cândida, leitora do 360 que é de Belém e me recebeu por lá, eu já desejei ver o Círio de Nazaré, declarado pela UNESCO como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade. A chance surgiu em 2017. Desembarquei em Belém na quinta-feira, com a cidade em meio aos últimos preparativos para sua maior festa. Era, de fato, outra Belém. Uma ainda mais fascinante, mas em vários sentidos incompreensível para mim. 

 

Eu já sabia da grandiosidade do Círio, que é, como a Amazônia, superlativo: todo ano, pelo menos dois milhões de pessoas participam da procissão, que ocorre no segundo domingo de outubro. Dois milhões que se espremem num percurso pequeno. Uma escolta gigantesca para Nossa Senhora de Nazaré, cuja imagem deixa a Catedral Metropolitana e segue até a Basílica. Foi a primeira vez que vi o Divino ser chamado pelo apelido. A intimidade do paraense com a Santa é tão grande que, por ali, Nossa Senhora de Nazaré é Naza, Nazarezinha, Nazica, nomes entoados por milhões a cada curva da procissão.

Tanta intimidade tem sentido, afinal a Virgem de Nazaré faz parte da família paraense. Talvez essa seja uma explicação possível: o Círio é o que é porque é família. Está presente na ceia de domingo, após a procissão, que no Pará pode ser mais importante que a ceia de Natal. Envolve comidas típicas, seja pato no tucupi, maniçoba ou arroz paraense. Antes e depois da festa, espere ouvir um “Feliz Círio”, assim mesmo, como o resto do mundo deseja Feliz Natal ou Ano Novo.

Definitivamente não é só uma procissão. Três vezes perguntei qual era o significado do Círio de Nazaré, para pessoas diferentes. Três vezes ouvi a mesma coisa: “Não tem como explicar, é preciso sentir”. Fafá de Belém parece concordar, tanto é que ela canta:

“Pois há de ser mistério agora e sempre.
Nenhuma explicação sabe explicar.
É muito mais que ver um mar de gente
Nas ruas de Belém a festejar

É fato que a palavra não alcança
Não cabe perguntar o que ele é
O Círio ao coração do paraense
É coisa que não sei dizer…” 

 

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